sábado, 25 de abril de 2009

Folhas em chamas

Papéis rabiscados amontoados pelo chão. Roupas penduradas na cabeceira da cama. Cama desforrada. Livros, lápis e mais papel. Pelo vidro quebrado da janela se esgueirava uma corrente fria de ar, que sacodia preguiçosamente a leve cortina. O ar pesado cheirando a embuia e mofo, conferia ao ambiente um “quê” de passado; por mais que ali jazesse um jovem deitado de bruços na cama, a escrever.
Redigia uma carta num papel vaporoso, com uma letra incompreensível. Recobria seu dorso nu apenas uma poeira flutuante, revelada por um feixe de luz, que a cortina permitia passar.
Depois de algum tempo a escrever ininterruptamente, pôs-se a ler o papel. Torceu a boca e o atirou-a ao chão, juntando-se aos tantos outros que ali estavam.
Retirou de um bloco que lhe servia de apoio, mais uma das folhas de papel de seda. Olhou-a por alguns instantes, não sei se a pensar com o que preenchê-la ou a clamar pelo auxílio da folha em branco em sua empreitada. Largou o papel sobre o bloco, pôs as mãos sobre os olhos e empunhou a caneta novamente contra o papel.
Travou-se novamente a batalha: a e pena tentando vencer o vazio do papel, o papel teimando em permanecer vazio, a pena ferindo e deixando suas marcas no papel, sulcos profundos, por onde corriam labirintos de dúvidas.
Silêncio. Pára. Repousa a mão sobre o papel. Cerra os olhos. Respira fundo e o ergue para ler o escrito.
Sua garganta embarga, vertem as lágrimas. Ainda não era isso que precisava ser dito! Mais uma folha se junta às outras no chão.
Agarra o bloco com as mãos e leva-o contra o rosto. Um misto de frustração e desamparo escorrem com as lágrimas. “Por que não conseguia dizer? Por quê?
Afundou seu rosto no travesseiro, comprimindo-o, como se assim pudesse estancar seu sofrimento. Passado algum tempo, embalado em soluços, adormeceu.

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Acordou como se estivesse com ressaca. Engoliu o amargo fel de sua própria dor e levantou-se com alguma dificuldade. Caminhou, apoiando-se nos móveis, rumo a janela. Entreabriu a cortina e buscou na rua algo que lhe atraísse o olhar. Seguiu momentaneamente duas moças cochichando alvoroçadas, entre risinhos, deboches e gestos amplos. Zelou pela travessia de um menino pequeno pela faixa de pedestres. Acompanhou o gorducho bonachão comendo sua barra de chocolate, enquanto caminhava espaçosamente pela calçada. Mas, nada detinha seu olhar por mais de uma oração.
Afastou-se repentinamente da janela, saindo do transe e voltou-se para os papéis atirados ao chão. Sentou-se na cama, apanhou furtivamente um ou outro papel, e leu com interesse o escrito.
Por um momento sentiu um estranhamento, como se não fossem suas aquelas palavras, aquela letra, aquela dor. Sentiu como se tudo aquilo fosse muito distante. Duvidou da realidade, desacreditou seu sofrimento, desdenhou do seu amor. O mundo foi se esvaziando... Seu coração foi esvaziando. Nada restou. Nem sombras, nem dúvidas. Nem sofrimento, nem dor. Nada!
Sentiu-se como se não existisse, como se o mundo fosse inventado: um jogo idiota!
Sem perguntas, sem respostas, sua alma emudeceu. Mas, ao invés disso trazer-lhe algum conforto, cravou-lhe tamanha angústia, que preenchia-lhe o vazio do peito. Parecia que ia parti-lo ao meio, era pior que sofrer por amor. Sua vida tinha perdido o sentido, foram embora as ilusões, os sonhos, a esperança.
Sentiu as paredes, os móveis, os papéis desintegrarem a sua volta. Uma escuridão enorme o recobria. Ergueu-se e caminhou como um bêbado em busca do chão.
Segurou suas têmporas de mãos espalmadas, como se tentasse manter sua cabeça sobre o pescoço. Impôs-se pensar em algo, a buscar por algo que valesse a pena, que lhe devolvesse a ilusão de viver.
Mas todas as suas lembranças lhe pareciam um filme tosco, mal produzido. Era tudo mentira! A vida era uma farsa!
Esticou a mão em busca de apoio, temendo cair. Encontrou diante de si a parede, que lhe emprestou algum apoio, retornando assim, ao palco de origem.
Voltou seu olhar para a pilha de papéis jogados no chão, e um lampejo de insanidade percorreu seus olhos. Vasculhou as gavetas do criado mudo procurando por algo. Abria, remexia os objetos e partia para a próxima gaveta. A esperança voltou a pulsar em seu ser.
Enfim, após uma busca incessante, encontrou o que desejava. Ergueu-se e abriu a pequena caixinha, enquanto se aproximava dos papéis. Retirou um pequenino palito de fósforos de dentro, e o riscou lentamente, degustando cada segundo.
Olhou para o palito aceso um instante antes de atirá-lo. Não por hesitação, mas como se quisesse conhecer o fogo de perto, olhar em seus olhos.
Ao atingir os papéis, o fogo timidamente foi tocando as folhas de seda. A medida que ia se inflamando, lambia as folhas com mais intensidade. Estas se contorciam, o alimentavam e se desfaziam.
Observava a ação do fogo sobre seus papéis e sentia-se um deles. Aquilo lhe conferia a serenidade de deixar de existir, de não ser.
Foi se esvaziando, suas energias foram se esvaindo. Sentou-se na cama, não suportando mais o peso de seu corpo. As labaredas se ergueram desafiadoras, convidando-o a se entregar.
Deitou-se de costas no centro da cama. Seus olhos reluziram o reflexo das chamas. Uma penumbra alaranjada e morna recobria o quarto, trazendo uma sensação reconfortante. Fechou os olhos.
E as chamas percorreram os lençóis.



Fabrine Schwanz

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